Saúda-se a reedição de Poesia de António Maria Lisboa, livro organizado por Mário Cesariny a partir do espólio que sobrou.
O texto "Erro Próprio" é o arranque, depois de uma comunicação desinspirada, e que sublime que é. Não traz nada de novo, mas o raciocínio lógico e as cadeias de ideias que se estabelecem são dignas de uma leitura atenta.
Com a intenção de dizer o que já deveria ter sido dito, para poder continuar com o que ainda não se disse, e que tem com o que fica neste expresso, apenas ligações de raízes.
Os poemas, a dita poesia, não são nada do outro mundo. São sim, muito Parisienses. Marcados pelo esoterismo, Grécia, Egipto, mas com pouca substância ao nível dos outros textos. Aquelas declarações de falso romantismo estilo Gina-Cais-do-Sodré-Beira-Rio-ao-pôr-do-sol tem um trago a intragável já. O poema "Virgula" tem a sua graça, contudo.
As considerações sobre o universo devia-as ter feito só para as estrelas e a carta do Sr. Cágado é uma aberração que deve ser lida em 15 segundos, o que inclui um desconto para virar as páginas.
Se na data da morte, António Maria Lisboa tinha apenas 25 anos, o espirito estava lá todo já. O organizador do volume, Cesariny, devia ter deixado muita coisa de fora, pois simplesmente não tem nada que justifique a página em que é impresso.
As cartas no final são uma brilhante inclusão, uma das primeiras, em que ele se dirige ao Grupo de Lisboa, bom material, bom.
As artes mágicas e ciências ocultas ou observatórias como António Maria Lisboa lhes chama, são as culpadas pelo lixo, numa obra que vale por si só, mas que prometia ainda muito mais com o amadurecimento. Já agora, a titulo de curiosidade, a Maria Helena que ele menciona estar casada em Paris com um Húngaro, é a pintora Vieira da Silva.
Vale como uma edição "definitiva" do que sobrou da obra, mas umas horas de corte e costura e ficava-se aqui com uma fatiota bem mais aprimorada.
Os documentos aqui contidos, segundo a user Patins do FSons, têm uma história engraçada. Citando-a:
Há mais pérolas sobre esse estrilho todo no Textos de Guerrilha. Na verdade, essa história é muito triste com o pai do Lisboa a destruir a obra dele depois de ele morrer e o Pacheco a ir buscá-la ao lixo da família Lisboa e a colá-la com fita-cola para a entregar à Guimarães Editora para que a publicasse e esta sem a publicar e a deitar fora a obra do Lisboa 10 anos mais tarde porque tinha a bela política de destruir todos os originais que estivessem 10 anos sem ser publicados...
Posto isto, o Cesariny fez o que podia fazer: publicar o que restou, que é pouco comparando com o que chegou a existir (Máquina de Guerra, Marfim, Pequena História a Mais Fantástica dos Amorosos triste e eternamente perdidos...) mas que ainda assim é imenso.
Fica aqui também um texto do Luiz Pacheco a disparar fogo acerca desta Poesia.
O Cesariny Muito Cansado
Mário Cesariny de Vasconcelos acordou um dia destes muito cansado. Imaginem o que tinha acontecido: na véspera pegara nos livros do António Maria Lisboa, um Poeta morto (que os mortos não têm opinião, é preciso adivinhá-la, sabê-la antes das coisas acontecerem, mas para isso há que ter a alma íntegra, há que preservá-la do caruncho), eram cinco folhetos rasos, um tinha só 6 páginas escritas em rodapé, outro era só uma página…, foi buscar uma tesoura e começou a fazer recortes, a seleccionar. Era uma verdadeira brincadeira de garoto, a própria tesoura estava espantada com a facilidade daquilo: onde as páginas estavam cheias de linhas, dizia-se que era prosa e punha-se para um lado; onde as linhas eram muito curtas e não enchiam a página toda, dizia-se que era poesia e punha-se noutro lado. Aquilo era tão fácil, que lá mais pró fim já era a tesoura que fazia tudo sozinha, muito entretida com a tarefa, enquanto o Cesariny escabeceava cheio de sono, cansado, muito cansado. Fez a tesoura dois montinhos baixinhos de papéis cortados, acordou o Cesariny que foi buscar uma guita e atou os dois molhinhos seleccionados. E como talvez fizesse jeito meter qualquer laracha dele foi às gavetas, cada vez mais cansado, e pôs-se a escolher entre o cotão e a farrapagem doutros tempos, donde já lhe tinham saído, por um feliz acaso, os seus últimos livros; encontrou um panfleto antigo, chapou-lhe uma data, sacudiu-o do pó, parecia novo, servia que nem ginjas, dava um prefácio todo catita para o montinho da prosa. E para a poesia? Não lhe vinha ideia nenhuma… Que cansado estava! Tornou a rebuscar na gaveta, mas não achou nada que prestasse. Ora! ia mesmo assim! Ninguém havia de reparar.
Pediu à velha oito tostões pró eléctrico e veio à Baixa, foi à editora, vendeu os dois molhinhos do morto. Depois, já mais satisfeito mas ainda muito cansado, foi à tipografia mandar fazer dois volumes; esperou: em meia hora estava tudo composto, reviu os granéis (trabalho que o deixou ainda mais cansado), mandou paginar, meter na máquina. Foi ali ao lado e enquanto bebia um café – cansado, muito cansado! – escreveu uma aldrabice qualquer para a capa a dizer que o António Maria Lisboa «com 25 anos apenas, criou um dos testemunhos mais válidos das recentes gerações» e que o «ERRO PRÓPRIO» aparecia na «Ideia Nova» como homenagem a um grande desaparecido que uniu a linha surrealista ao plano maior da poesia portuguesa». Depois desta bofetada (indirecta) no Breton, que o deixou verdadeiramente cansadíssimo (e ao Breton? não se sabe…), pensou que não havia tempo a perder, agora que ia assim, é que ainda tinha de escrever um artigo (grande) muito elogioso sobre a Vieira da Silva, a engodá-la, a tornar-se lembrado, a ver se a convencia a arranjar-lhe a tal bolsa da Gulbenkian, que isto de mortos, mesmo poetas, mesmo poetas e amigos, não dá nada. Só arrelias. Só canseiras.
Voltou à tipografia. Tudo em ordem. «E quer levar já?» Pois! Desceu o Chiado carregado com os livros, cansado, muito cansado, em cada braço um volume, no direito a Ideia Nova a verde, no esquerdo a Poesia e Verdade cor de chichi; fazia um vistaço. Entrou no Gelo, a mostrar aos amigos as suas últimas obras. Fez algumas dedicatórias que bem mostravam o seu grande cansaço. Tiveram pena dele, que se devia poupar, que já não eram para a idade dele aquelas correrias pelos editores, que deixasse isto para os rapazes das gerações mais recentíssimas, que talvez eles viessem a falar do Lisboa com outro merecimento. E mandaram-no para casa, que fosse dormir. Que se via que estava muito cansado. E foi assim que tudo aconteceu.
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