Texto publicado na Orgia Literária. Da obra do norueguês Kjell Askildsen publicada no nosso país, os romances mantêm-se inéditos, num glorioso esforço editorial que trouxe este ano Os Cães de Tessalónica ao mercado, e que já havia introduzido vários dos seus mais célebres e bem construídos contos numa colectânea imperdível, intitulada Um Repentino Pensamento Libertador. Askildsen há-de ficar nas páginas da história como um autor de narrativas breves, um dos melhores no formato. [Uma Vasta e Deserta Paisagem, Kjell Askildsen] Uma Vasta e Deserta Paisagem foi originalmente publicado em 1991, saturado de humor negro nas histórias, e por conseguinte, no destino trágico das pessoas que surgem aqui como personagens (porque de tão defeituosas, só podem mesmo viver em cidades dos leitores). Esse caminho que elas percorrem, porque a personalidade só lhes indicou essa estrada, é uma só voz com a misoginia falsa que une a escrita de Askildsen à fala das personagens, que por sua vez são ecos da sociedade sem boas-maneiras. O livro é composto pelo conto, ou narrativa breve, que lhe dá o título — e que encerra estas 76 páginas — e por seis outros casos clínicos. As personagens solitárias surgem espalhadas pelo livro, porque tê-las congregadas numa só narrativa seria maltratá-las, como que sussurrar-lhes ao ouvido que não são assim tão especiais como se acham, como a falta de desafios e o isolamento lhes comunicam. São almas pesarosas e envelhecidas, mas com um sentido de humor acutilante e desmedido: um homem olha para um retrato de família e acha triste estarem ali mortos e vivos em conjunto. Na desgraça, encontra com um estranho mal vestido um ponto em comum: concordam que a melhor maneira de morrer é com um ataque cardíaco. Esse estranho é o que fica da morte da irmã para a posteridade, a única coisa digna de relato, desconhecendo que ele matara a própria mulher. Mas o que podia ser uma amizade para o fim da vida, é terminado pela falta de paciência e de comiseração. Assim, incisivo. São estes diferentes ângulos, difíceis de almejar, que fazem a escrita de Askildsen ser impactante. Os finais dos narradores não são relatados, nem precisam. Sabemos que habitam nas nossas cidades, que vagueiam no seu quotidiano até mais não poderem, com a certeza que o resto do mundo está pior do que eles, existindo nisso um prazer explícito. A figura clássica do homem moderno, ensimesmado e retraído das pessoas que o rodearam ao longo da vida, que sem responder nem olhar para a mulher sai para a rua, surge noutro conto, em que a personagem principal vê um acidente entre dois carros, e regressa sem ter qualquer interesse por isso, apenas por ser Domingo e estar de mau humor por não gostar desse dia. Há uma dose de loucura nisto, mas é o tipo de situações que deixam o actor destas façanhas a olhar para o tecto quando se deitam na cama ao fim do dia, a rir-se perante a sua petulância. Há traços claros neste egocentrismo, em preferir as letras à família, como no caso do homem que vê passar o seu irmão gémeo, com quem não convive há mais de dez anos, e tenta esconder-se dele, pondo um jornal à frente da cara. No instante em que pondera pegar fogo ao irmão com um isqueiro, uma mota descontrola-se e o homem abandona o local e o irmão sem confirmar se o indivíduo está vivo. Daqui se denota um padrão, que faz mais conciso o formato-livro de Uma Vasta e Deserta Paisagem, com as histórias brilhantemente agregadas por sentimentos. Para estas personagens, a incompreensão por parte dos humanos é garantida, portanto apenas importa estarem bem sozinhos, não dando uma oportunidade a ninguém, ocupando o vazio com pequenos prazeres que só eles compreendem. Tal como o homem que partia de autocarro sem querer saber a paragem final, não têm uma casa, um lar onde se sintam confortáveis. E isto não é mais do que uma falsa simplicidade nórdica, que confunde os que acham que uma fotografia a preto e branco é básica, ignorando que nesse pedaço de papel pode estar o mundo. Um outro homem tinha uma doença que o tornara feio e uma vida infeliz, mas ia para uma biblioteca não para ler, mas para dormir. E são estes momentos hilariantes, de desmistificar a profundidade que a alma humana possa ter que são tão encantadores no que Askildsen escreve. Os exemplos abundam: uma pessoa só a meio do dia se lembrar que é a octogésima vez que faz anos; num momento pensou que devia passar a ir todas as noites ao café, mas minutos depois foi expulso de lá e percebe que não devia voltar; as mortes sempre presentes, seja de um familiar ou de um estranho; ou a imoralidade que assola todas as personagens principais, como o que quer ver a irmã nua, que quer fazer amor com a filha de um irmão de que se tenta aproximar mas que preferia morto. E estas relações entre irmão ou casais são centrais nos contos, pelo manifesto desprezo pela outra parte. Mesmo quando têm alguém em casa, os homens estão profundamente sozinhos. Quem lida com as personagens principais, reage humanamente, irrita-se, luta por eles, abandona-os, faz-lhes frente e sofre com eles pelo seu desprendimento emocional (relembrar que Askildsen foi tradutor de Beckett), várias vezes fazendo-os notar que não são o centro do mundo. O tempo trouxe-nos até ao dia de hoje, mas se o passado é ignorado, o futuro é visto com extremo negativismo. Talvez se o mundo fosse infinito e o tempo não acabasse, eles teriam prazer em viver o dia-a-dia. A maneira como Kjell Askildsen escreve sobre a melancolia da vida moderna é decidida, comedida por ser bem enquadrada entre paredes, mas de punho forte, monolítico, de uma perspectiva suave com que relata a rudeza que observa, muito expressiva, criando uma impressão pictórica que se retém. por Miguel Gomes-Meruje Uma Vasta e Deserta Paisagem Kjell Askildsen trad. Mário Semião Ahab 2011
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