Não será mistério a temática do último livro de José Saramago, por esta altura. O livro abre com uma espécie de génese explicada a alguém com muita dificuldade de compreensão, e enquanto o narrador expõe as circunstâncias da existência e da relação entre Adão e Eva, começam as questões. Caim tenta dar alguma racionalidade aos escritos bíblicos, e na incapacidade, expõe o absurdo e profano, mas é mais apropriado dizer que é um deboche do caralho.
É sem dúvida um apontamento de nível na carreira de Saramago, algo que não poderia ser escrito por ninguém com aspirações literárias, principalmente num país de tão acérrimos defensores como o nosso. Manobra arriscada, mas superada com sucesso.
Abel era o preterido do senhor em relação a Caim. Farto de ser gozado, este mata Abel e deus logo aparece. Deus, quando culpado por ter permitido tal coisa, reconhece a sua parte no crime. As analogias aumentam e Caim faz passagem por vários episódios bíblicos, desde o Jardim de Éden, Sodoma, Jericó até à Torre de Babel, e trava contacto com várias figuras como Lilith, Moisés ou Abraão.
Caim faz-se passar por Abel e começa a enganar toda a gente, sob a protecção de uma marca na testa. Quando dá por si, tem um filho e a região em polvorosa, ignorando o tempo e visitando (satirizando) com os episódios como bem entende.
É ficção, tal como o Novo Testamento o é. Ocupa um propósito muito interessante, principalmente vindo de alguém na posição que o escritor ocupa.
É escrito de uma forma assumidamente tosca, directa, com uma missão clara, no entanto a decisão de renegar todos os nomes para minúscula e de não destacar os diálogos no texto, apesar de ser casmurrice de Nobel e para dificultar a leitura, percebe-se e perdoa-se.
Quanto ao suposto conteúdo ofensivo do livro, fica aqui um pequeno dado:
Cerca de 15 ofensas a Deus – desde o filho da puta (p. 82) ao maléfico/ maligno/cruel (pp. 85, 86, 106, 127, 145), passando pelo materialista opulento (p. 112), desavergonhado (p.l13), vingativo (p. 121), injusto (p. 136), incapaz de nos amar (p. 143), estúpido (p. 150), invejoso (p. 164) e caricaturável (p. 173)

Pagava para ver o sorriso com que veio a última palavra deste livro.